Saturday, June 16, 2007

Registros

Quem inventou esta história de ser gente?
Ser gente de verdade é estúpido. Gente.
O doce mesmo para o mundo é fingir ser (não ser sendo) qualquer outra coisa.
Coisa, espalhe-se esse som, doce,
Que fique registrado, e ouça-se o barulho enquanto datilografo.

É bom fingir que não se é, não ser,
[Não um fingir de fingidor
Aquele que o faz por amar o real, por ser gente]
É algo que vai além, além da cotidiana mesquinharia,
Além até do criticável,

A mesquinheza de todos nós, isto sim vale,
Isto sim nos torna gente,
Mais que toda compaixão e todos os donativos para a campanha contra o câncer,
Mais que todas as entidades filantrópicas juntas e todos os organismos internacionais juntos

Ser puro, asceta, esterilizado, estéril? Vamos ao Tibet fazer proselitismo.
Só fazê-lo, em nome de nada.
Registre-se, céus, carrinhos de bebê parados neste parque
Importa aqui é ser um nada flutuando, um nada funcional, a nadar funcionalmente e sem rumo

E para quê vou eu adorar um deus que foi também humano?
Humano, meu deus, humano.
Vou rezar...com quais funcionalidades?
Ufa. De certo que ninguém são, aqui, rezaria a um humano.
- O meu quarto não tem espíritos (!) -
- As formas da sombra da minha cadeira não são sobrenaturais (!) -
- Então não vou agradecer a um humano pendurado na parede -
Que expressa sofrimento

Para quê? Ora, para quê.
Cesse esta covardia anti-humana
E registremos juntos, calçadas esburacadas, sentem-se cá comigo,
Que se há algum motivo para rezar
Ou para agradecer
Ele se deve a não-existência do sobrenatural
Pura e simples, se deve sim a – nossa - existência!
À nossa humanidade
Nossa mesquinheza.
O terço aos indesculpáveis
O rosário aos sovinas.
Todos os dias rezo um pai nosso à minha oleosidade
À minha permissividade, à minha fraqueza
Ao meu correr chorando por atenção
Rezo pensando nisso junto à minha cama

Escutem as mudas recém envenenadas pelos vizinhos,
Escutem-nas, formigas agora sem formigueiro,
Decaptaram aqueles mais gente, que foram gente no passado,
Esquartejaram todos os deuses,
Mantiveram o que era inofensivo aos olhos deles,
Deles os quais não sei quem são,

E o que botaram no lugar?
Uma moral esdrúxula, e princípios mais esdrúxulos ainda,
Botaram uma moral sem beijos melados o bastante,
Sem narizes escorrendo, sem suor e sem carnes em excesso
Colocaram no lugar de deus, o mundo construído sem deus
Sem deuses rechonchudos
E no lugar da alegria, botaram alegria
No lugar de todo o resto, ficcionaram todo o resto
Assim podemos julgar viver bem
A única diferença do mundo que eu vivo,
E do mundo que eu gostaria de viver
É que naquele falta palpitar, o palpitar usual
É que naquele falta a ruptura do nascimento inercial de um bebê

[Em vez de pularmos das janelas
Pensemos na realização de um esporte radical]

Voltem-se para mim, janelas quebradas
Registremos o andar espaçado do homem meio contente
À caminho do supermercado cuja fila no caixa é quilométrica
Guardem na memória este, pior de todos, que vos escreve
(E que por coincidência é o mesmo a andar, meio contente, a caminho do supermercado)
Que dentro de uma hora será ultrapassado,
Pela demora nas filas dos caixas
Pela lógica inexorável dos acontecimentos
Pelo atraso cada vez mais inesperado dos meios de transporte públicos
Por sua vida cada vez mais dolorosa e cada vez menos sagrada.
Que é do tamanho de um cartão bancário, cuja senha se esqueceu
Cuja alma tem se sentido presa, numa camisa de força, tão espetacularmente presa
Que quase não se reconhece como alma, mas como gosma
E vê nos tantos outros passantes, uma natureza menos repugnante que a sua
E sente, ao sentir, um orgulho inegavelmente imperdoável

3 comments:

Anonymous said...

Belíssimo texto, Diogo!
De certa forma duro e talvez amargo, mas ainda num tom "agradável", por assim dizer, ao menos na leitura.

Diogo Bardal said...

hehe ae jonathan,

Anonymous said...

É de se pensar.....