Saturday, August 05, 2006

Sétimo dia Afro

Minha avó falecera há uma semana e meu pai, ainda muito abalado pela morte repentina e pela série de resoluções burocráticas que tivera que tomar, como escolher caixão, as flores, optar por um ou outro procedimento de maquiagem do defunto para tirar expressões de dor, me avisou da missa de sétimo dia que havia marcado, na igreja de Bom jesus dos Passos, la na freguesia do Ó pertinho de onde moram meus avós. Era às vinte horas.
Todos nós da família nos agrupamos para irmos juntos à missa rezar pela perda nossa, celebrar a morte, que faz parte da vida e existe apesar de todas as bobagens não importantes que nos alegra ou nos entristece também. Fomos em dois carros, estacionamos num antigo parque de diversões que virara um estacionamento bem dos fuleiros. Chegamos à porta da igreja a qual possuia uma torre desproporcionalmente alta, um pouco feia.
A Igreja estava lotada numa sexta à noite, fato incomum. As igrejas vêm esvaziando com o tempo. Tem a ver com a dessacralização do mundo. Mas este dia ela estava surpreendentemente alegre, cheia, viva. Pareceu-me, por um instante, que aquela era uma homenagem singela, descompromissada à minha avó, que de todos os anos que vivera, talvez nenhum deles tenha feito uma reclamação sequer da sua vida, e tenha passado toda sua vida vivendo para os outros.
Notei algo de diferente no figurino das pessoas. Umas túnicas, uns turbantes, de estilo africano. Davam um colorido entusiasmante àquela missa de sétimo dia. Quê que há?. A comentarista da missa foi ao púlpito e proclamou: "Muito axé a todos! Nesse dia lindo da nossa missa afro para a comunidade negra!". Meus pais e avós se entreolhavam, e ela continuava. "Vamos festejar a nossa cultura, nossa identidade!". Cheguei perto de minha mãe e perguntei: "na hora de marcar a missa alguém avisou que a missa iria ser especial para a comunidade negra? E assim com esses batuques alto astral?". Chegavam os padres com a procissão de entrada, todos não só padres, mas verdadeiras autoridades na igreja católica, representantes das lutas pelos direitos negros. Minha mãe respondeu que não, que ninguem havia dito nada. Se não ninguém iria marcar uma missa de sétimo dia numa celebração com cavaquinhos, batuques, coral, músicas em dialetos africanos.
Foi um desencontro, isso com certeza. Um desencontro não só de pessoas (pois minha família estava lá com um propósito totalmente diferente), mas de sentimentos, de pensamentos, de momentos, deus! Todo o desencontro numa só compressa dimensão, espaço e tempo. Alegria e dor.
O padre dançava. Dizia no sermão que acreditava num deus que canta e dança. Assim como Nietzche, pensei. Sinceramente não soube o que sentir. Só sei que vivi aquela hora, hora e meia, e não achei desrespeito. Senti-me numa comédia verdadeira. Não tinha nenhuma probabilidade da missa de sétimo dia da minha vó ser uma missa afro.
Pensei depois em casa e tentei achar algo de providencial que justificasse o engano, mais pela distração que tenho de procurar essas razões. E enquanto pensava, quis que aquilo fosse uma forma de minha avó, que sempre pensou em agradar os outros e não a ela, ceder de novo a sua vez, o seu espaço.

Oxalá.


(é fato verdadeiro.)

1 comment:

A Esquesita said...

Bom, gostaria de primeiramente deixar meus sentimentos a você pelo falecimento de sua avó.
E sobre o texto, foi muito bem escrito! Gostei de como vc falou dos detalhes, deu pra imaginar com maior clareza. Legal!